RESENHA: O que é celebrar?
POUILLY, Alfredo. O que é celebrar? In: CONSELHO Episcopal Latino-Americano. Manual de liturgia. São Paulo: Paulus, 2004. p. 63-88.
O
primeiro capítulo intitulado “O que é celebrar?” do Manual de Liturgia,
desenvolvido pelo CELAM, aborda diversos aspectos em torno do ‘celebrar’ –
aspectos semânticos, histórico, antropológico e teológico. Na breve introdução,
utilizando-se do Catecismo da Igreja Católica, os autores apresentam “A
celebração do Mistério cristão” como uma expressão muito significativa para
designar as ações litúrgicas na atualidade. E a partir disso desenvolvem os
diversos aspectos propostos.
A
‘liturgia’ é o culto de uma vida cristã transformada em fidelidade a Deus,
expressa em alguns atos sacramentais que atualizam a presença de salvação, a
‘celebração’ é o momento em que ocorre essa atualização mediantes gestos,
símbolos, ações e ritos. Ou seja, a celebração é representação, nova presença e
a atualização no plano local-temporal do mistério Pascal de Cristo. Durante
muito tempo o termo ‘liturgia’ foi esvaziado, mas graças a Mediator Dei de Pio XII é que foi rejeitada a ideia de identificar
liturgia com a parte externa e cerimonial do culto cristão.
Segundo
os autores, toda celebração é festa, mas nem toda festa é celebração: é um
operar simbólico num clima de festa que exorta à participação ativa dos
participantes. Buscando no aspecto histórico a relação celebração-festa vê se
que a dimensão festiva das relações entre o ser humano e Deus já se manifesta
no Antigo Testamento. Diante das maravilhas realizadas pelo Senhor, o coração
do ser humano pula de alegria. A história de Israel recorda algumas festas que
marcaram época por sua solenidade, alegria e entusiasmos, como a Páscoa de
Ezequias, o retorno do Exílio, a festa dos Tabernáculos.
No
Novo Testamento, Jesus cumpre as expectativas messiânicas. E a alegria
messiânica inaugurada por Ele se expressa nos encontros da comunidade primitiva,
a qual festeja também através de danças. Os cristãos dançavam muito nos
primeiros tempos da Igreja até que o Concílio de Wurzburg proibiu em 1298, acusando
tais práticas como pecado grave. Apesar disso, ainda na América, as danças têm
lugar importante nas festas dos padroeiros, como expressão da religiosidade
popular. Essa dimensão festiva, segundo os autores, vai se perdendo no
Ocidente, principalmente depois de Constantino em 315, onde a festa começou a
ser substituída pelo culto marcado pela cerimônia e pela obrigação. Na
atualidade, vê-se o retorno progressivo do interesse pelo festivo e pela dança,
culminando na reflexão da teologia litúrgica e na prática pastoral.
Com
isso e a partir dos aspectos antropológicos, verifica-se que a festa é
celebração da vida no tempo em comunidade. Ou seja, a festa como ‘celebração da
vida’ é uma aprovação global da vida, transcendendo os momentos ruins que se
pode enfrentar, celebra-se porque se crê que a vida é realmente boa (expressão/
protesto), e que pode se ter um melhor encaminhamento, assim como o mundo
também pode ser melhor (imaginação). A festa como ‘celebração no tempo’ atende
à necessidade do ser humano de dar um sentido ao passar do tempo, busca a
evocação dos acontecimentos iniciais (memorial), vive os acontecimentos de
algum modo presentes (presença) e faz o anúncio da vivência em plenitude de
toda a força de vida contida no que se celebra (profecia). E a festa como ‘celebração
em comunidade’ mostra que é necessário a comunidade para exprimir-se em todo o
seu significado e em todo o seu dinamismo. E quanto mais a afluência dos
convidados, mais plena se torna a festa (sentido universal).
A
festa se caracteriza por forte vivência de sentimentos (alegria, fervor),
sentido comunitário e universal, ruptura do cotidiano, sentido extático
(permite integração pessoal e comunitária), sentido simbólico (exprime os
sentimentos por elementos simbólicos, como por exemplo, pela dança e pelos
cantos) e por uma estrutura (objeto – o que se celebra; sujeito – quem celebra;
lugar – onde se celebra; tempo – quando se celebra; sinais – como se celebra e
a motivação – por que se celebra).
Diante
disso, tudo o que se disse sobre a festa em geral se revela de fácil aplicação
à celebração litúrgica. Assim, a liturgia celebra o mistério pascal enquanto
manifesto na existência. É memorial dos acontecimentos salvadores, é celebração
em comunidade em união com toda a Igreja.
Segundo
os autores, o primeiro teólogo da liturgia que abordou a celebração enquanto
tal foi Odo Casel. Para ele, a liturgia é festa, a celebração é uma Epifania
que torna presente e comunica o mistério único de Cristo. É a celebração do
“hoje” de Deus no “hoje” dos homens.
A
celebração litúrgica e, de modo particular, a celebração eucarística, é o cerne
da festa porque assegura a presença do acontecimento, do mistério celebrado.
Isso é realizado, fundamentalmente, pela palavra – que recria o acontecimento
por meio de um relato, e pelo rito – que expressa o acontecimento numa ação
simbólica. Isto é, o acontecimento da Páscoa de Jesus, tornado palavra no
querigma primitivo, ritualiza-se nos sacramentos e na liturgia da Igreja.
Celebra-se o acontecimento narrando o ocorrido e renovando o rito que o torna
presente. E os grandes protagonistas da festa e da celebração são Deus em seu
mistério trinitário e os homens congregados em assembleia, constituídos em povo
sacerdotal.
Ao
final do capítulo, os autores afirmam que nos últimos 50 anos, a partir da Mediator Dei (1947), houve uma rápida
evolução do conceito de liturgia, sem que se negassem os sucessivos aspectos
que foram se desenrolando. O grande marco desse progresso é o Concílio Vaticano
II (1962-1965) que define a liturgia como uma “ação”, uma “obra” de
santificação do ser humano e glorificação de Deus. A III Conferência do
Episcopado Latino-Americano em Puebla (1979) amadureceu a perspectiva
apresentada em Medellín (1968), apresentando a liturgia como uma “festa de
comunhão eclesial, na qual o Senhor Jesus, por seu mistério pascal, assume e
liberta o Povo de Deus e, por ele, toda a humanidade, cuja história é
transformada em história salvífica para reconciliar os homens entre si e com
Deus” (DP 918).
Dessa
maneira, em Puebla assume-se uma nova categoria: a festa. Esta acentua o
sentido experiencial e celebrativo da liturgia, plenificando o sentido do culto
e da obra, e ajuda a superar a dicotomia sagrado-profano, rito-vida. Tem-se
certo que a liturgia não é cumprimento de um rito, nem a simples participação
numa ação, mas na verdade, por sua própria natureza, postula ser vivência
totalizante, uma comunhão profunda com Deus, com os homens e com a criação. Uma
experiência do sim radical à vida, o que envolve a afirmação dos valores que a
constituem, uma denúncia dos antivalores que a degradam, assim como um
antecipar e pré-saborear a plenitude que se espera no Reino.
A
liturgia-festa assume com clareza a realidade eclesial comunitária, destacando
a comunhão das pessoas participantes, a festa exige participação de todos. Na festa
cristã há um lugar especial para o serviço hierárquico. Quando se insiste na
comunhão, não se pretende diminuir a importância do sacerdócio ministerial, mas
assegurar sua eficiência a serviço do sacerdócio comum dos fiéis.
Por
fim, a liturgia-festa permite integrar com eficácia a ação santificadora de
Deus e a glorificação que o ser humano lhe tributa. A ação de Deus provoca
festa, essa que ocorre no coração do ser humano e liberta para a ação e o
compromisso. O ser humano em ação em favor do bem é a festa de Deus. E ainda
explicita melhor a presença do Espírito Santo, do qual emana a alegria pascal
de toda a celebração.