RESENHA: O Pecado: Implicações teológicas e pastorais

MOSER, Antônio. Implicações teológicas e pastorais. In: O pecado: Do descrédito ao aprofundamento. 2ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 281-315.

A presente obra apresenta-nos a realidade do pecado nas diversas fisionomias: “pessoal, interpessoal, comunitária, social e cósmica” (MOSER, 1996, p. 281). Somos convidados a nos adentrarmos num universo de conversão e arrependimento dos pecados. Nesta perspectiva da Boa Nova de Jesus Cristo, que possibilitando o despertar da consciência coletiva e individual, para que só assim a reconciliação aconteça no nosso tempo, sendo a reconciliação o canal da Graça.
Antônio Moser, escritor da seguinte obra, possui um currículo muito vasto de pesquisa no campo da moral. Segundo Moser, o pecado é uma realidade que sempre marcou a história das religiões. E o escritor se apropria de três “fatores” já conhecidos que leva a ter consciência do pecado, sendo: a urbanização, a dessacralização e a secularização; para o escritor tais fatores são os eixos que regem a modernidade. Sua obra esta dividida em 10 capítulos, e nos ateremos nesta resenha ao nono capítulo que se foca nas “Implicações teológicas e pastorais”[1].
O pecado é um assunto que tem vários questionamentos em torno de si, sejam teológicos ou mesmo filosóficos. A partir disso, frei Moser mostra com excelência a situação do pecado, como ele é abordado, interpretado, o seu panorama e o seu descrédito ao longo da história. O autor aponta como essas noções repercutem na atividade pastoral e como estão associadas às compreensões de Deus. O pecado traz em si uma realidade profunda, misteriosa, dinâmica e abrangente que marca a história humana no se todo. Ao focar este ato se inclui que ele tem uma repercussão teológico-pastoral sobre outras realidades conexas, como as da conversão, da consciência e da penitência. Não se pode iluminar o drama do pecado, se ao mesmo tempo não se fizerem presentes a conversão, a consciência e a penitência. Pois ambas se interligam e são compreendidas à luz da outra.
A conversão emerge em primeiro lugar. Segundo frei Moser é a face de uma mesma moeda já que pecado e conversão se articulam de modo indissociável. “Sem a possibilidade de conversão o pecado seria uma espécie de sina que levaria os seres humanos ao desespero.” (MOSER, 1996, p. 282). A conversão é, antes de tudo, uma obra da graça de Deus que reconduz o coração humano a ele. É descobrindo a grandeza do amor de Deus que o ser humano experimenta o horror e o peso do pecado e começa a ter medo de ofender a Deus pelo mesmo pecado, e ser separado dele.
Formar a consciência sempre foi e sempre será um dos grandes desafios pastorais, pois ela é a instância imediata das decisões humanas. A consciência “participa da dinâmica da vida e é bombardeada por inúmeros fatores. Sejam eles mais pessoais, sejam interpessoais, sejam mais sociais.” (MOSER, 1996, p. 282). Este segundo lugar, o da formação da consciência, quer possibilitar o desdobramento mais profundo dela, e, portanto, mais original.
O terceiro lugar o do sacramento da penitência ou reconciliação comporta o reconhecimento expresso do pecado e o pedido de perdão.

Aqueles que se aproximam do sacramento da Penitência obtêm da misericórdia divina o perdão da ofensa feita a Deus e ao mesmo tempo são reconciliados com a Igreja que feriram pecando, e a qual colabora para sua conversão com caridade, exemplo e orações (CIC 1422).

O sacramento da penitência dá ao pecador o amor de Deus que reconcilia: “Deixai-vos reconciliar com Deus.” (2 Cor 5, 20).  Aquele que vive do amor misericordioso de Deus está pronto para responder ao apelo do Senhor: “Vai primeiro reconciliar-te com teu irmão.” (Mt 5, 24).
O primeiro tema a ser trabalhado por frei Moser intitulado “Que significa converter-se?” trabalha a temática da conversão. A conversão sempre um dos temas bíblicos fundamentais, nela esta envolvida a dinâmica da salvação e da experiência de fé. Os profetas pregam que a conversão é uma condição essencial para o povo manter seu relacionamento com Deus. Jesus em sua pregação nos relata os Evangelhos, faz um forte apelo à conversão. Aderir seu projeto salvífico pressupõem a conversão. (Cf. Mc 1,15). O Papa Francisco, em sua exortação apostólica Evangelii Gaudium, assegura que “a alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento” (EG 01).
“Do plano objetivo para o pessoal; dos atos para as atitudes; do individual para o social” (MOSER, 1996, p. 284). Este tríplice deslocamento do acento do pecado-conversão se articulam dialeticamente para transformar a história do ser humano. Os dois primeiros temas “do plano objetivo para o pessoal; dos atos para as atitudes”, remete a uma refontalização bíblica do tema apresentada pelos profetas e levado a tônica pelo próprio Jesus. A grande dificuldade é a passagem do nível “individual para o social”, frei Moser questiona o ato de conversão quando uma das faces mais profundas do pecado é a estrutural.
Em “Deixar-se interpelar por Deus na realidade”, é apresentado à conversão como um processo, dinâmico e profundo. Conversão não é propriamente uma vivência, mas uma experiência, pois a experiência coloca no nível mais profundo traduzindo em um movimento contínuo, um árduo processo crescimento que perpassa toda a vida e não apenas um momento passageiro e emocional. O seguimento a Cristo tem de ser experiencial e real. Assim, nesta dinâmica, o ser humano estará atento ao compreender sua situação e retomar um novo caminho, haverá uma provocação de Deus para que se busque outro caminho.
“Esperar e agir no ressuscitado” ressalta a esperança da vitória em Cristo sobre o pecado em todas as suas dimensões. A conversão evangélica não é só experiência, mas uma experiência pascal. E compreender o termo esperança em seu sentido evangélico é associar ao júbilo do ser humano que experimenta seu encontro com o triunfador da morte e de todas as formas de mal. A esperança traz consigo uma dimensão escatológica de se implantar entre todos os seres a solidariedade fundamental principalmente com aqueles que sofrem situação de pecado, para que, estabelecendo com o outro e com Deus uma nova relação se passa ter uma nova criação.
O apelo à conversão aparece em Jesus como uma tônica alegre, Ele prega a possibilidade de se instaurar entre os homens uma etapa nova e benfazeja. Em “Abraçar alegremente o projeto de Jesus”, frei Moser apresenta que para Jesus o que se antepõe não é a volta ao passado, mas a acolhida alegre da salvação que ele prega e encarna. Jesus interpela não somente aos pecadores, mas também aos justos, e, ambos são colocados diante de uma opção nova e decisiva, ambos deverão acolher a proposta do Reino e vivenciá-la. E, a adesão total a Jesus é a oferta de salvação. Voltar para Deus é a única resposta possível a um Deus que volta totalmente para os seres humanos.

O que deve ser pregado é a salvação e não o pecado, o objetivo imediato da pregação é o convite à conversão e não a denuncia ao pecado. [...] Não é o abandono do pecado em si mesmo que leva o ser humano a aderir ao Cristo e a sua mensagem. Mas, aderindo ao Cristo e à sua mensagem é que o ser humano sente a força necessária para abandonar o pecado, pois é Cristo que projeta uma luz viva sobre o pecado (MOSER, 1996, p. 289).

Só quem faz a experiência da conversão poderá avaliar o que significa pecado. Pecado e conversão traduzem o mistério da salvação. O Reino de Deus não é deste mundo, mas vai se concretizando na história humana, é uma realidade escatológica-histórica, trancendente-imanente, divino-humano. O Reino convoca o ser humano, para que, este em suas limitações participe deste banquete da vida. Converter-se ao Reino será sempre e em todas as circunstâncias assumir a causa que Cristo assumiu, ou seja, o cristão tem que se comprometer com a causa dos pobres. Jesus anuncia o Reino com sua vida, situando-o entre os pobres, a partir dos pobres, o Reino evidencia que a pobreza generalizada das massas é fruto da exploração e não da vontade de Deus. Por isso, em “assumi-lo de acordo com as urgências históricas”, frei Moser quer apresentar a mudança de atitude no ver, julgar e agir, para que, desta forma, o Reino se concretize não como utopia, mas como a encarnação de homens de boa vontade que constroem um mundo novo.
“Por uma conversão pessoal, comunitária e social”. O pecado deve ser entendido como pessoal e social. Estruturas retratam os pecados pessoais, mas também arrastam as pessoas para o pecado. O pecado atinge o ser humano em sua individualidade e, neste atingir, molda sua estrutura pessoal, social e comunitária. Urge-se trabalhar a conversão dos corações e pela melhoria das estruturas, pois o pecado reside na origem das situações injustas. Devem-se trazer condições de vida às pessoas e às instituições (políticas, religiosas sociais, comunitárias, econômicas), para que, através destas condições possa se testemunhar que Deus é o Deus da vida. Na prática pastoral, esse proceder assume uma conotação de mudança necessária a nível pessoal, comunitário e social.
O segundo tema a ser elucidado por frei Moser “Despertar de uma nova consciência” aborda que o processo de conversão é deslanchado por um choque. Este choque vai depender de uma hermenêutica pessoal e social através da consciência. Deve-se compreender que a consciência não é um departamento de estanque, pois ela é trabalhada por muitos fatores. A boa formação da consciência é uma das mais complexas tarefas, isso complica quando no processo formativo da consciência se insere os valores evangélicos.

No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faze isto, evita aquilo. O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado. A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. Graças à consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se realiza no amor de Deus e do próximo. Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos aos demais homens, no dever de buscar a verdade e de nela resolver tantos problemas morais que surgem na vida individual e social. Quanto mais, portanto, prevalecer a reta consciência, tanto mais as pessoas e os grupos estarão longe da arbitrariedade cega e procurarão conformar-se com as normas objetivas da moralidade (GS 16).

“Quando a consciência não é departamento de estanque.” A consciência é um componente de um todo, ela não é um simples faculdade ou departamento estanque, ela é uma “realidade dinâmica, que interage na história de uma pessoa mergulhada no espaço e no tempo” (MOSER, 1996, p. 300). Por isso, a consciência é trabalhada no sentido amplo por fatores mais diversos que engloba o hodierno do ser humano. São Boaventura define a consciência como arauto de Deus:

A consciência é como o arauto de Deus e seu mensageiro, e o que diz não ordena de si próprio, mas como proveniente de Deus, à semelhança de um arauto quando proclama o edito do rei. E disto deriva o fato de a consciência ter força de obrigar (MOSER, 1996, p. 301).

Em outras palavras, a consciência traduz vínculo profundo da criatura com o Criador, pois, ela é uma realidade que comporta características divinas.
As informações que o ser humano recebe pode o formar tanto para o bem quanto para o mal, ou seja, sua consciência é situada dentro de um contexto histórico que a influencia. Sendo assim, as ilusões sobre os imperativos da consciência é a arma mais eficaz a serviço do pecado em suas várias configurações. O ser humano é mestre em enganar a si e aos outros. “Só o Cristo se revelou mestre em desmascarar a aparente boa consciência dos que o rejeitavam, em nome de Deus e da religião” (MOSER, 1996, p. 302). Só existe conversão quando caem as máscaras, e, somente no face a face com Deus que se descobre a identidade profunda da consciência.
Frei Moser em “A formação da consciência moral: antigos e novos desafios”, afirma que a consciência é uma espécie de ponte entre o humano e o divino. Somente os dados da ciência reduziriam a consciência moral somente a um aspecto do todo. Deus se serve das mediações humanas para agir e se comunicar. Por isso, para se chegar uma consciência moral verdadeira deve sempre se desconfiar de suas próprias certezas. “Apelar para própria consciência é correr o risco de estar apelando para a própria subjetividade, no sentido mais negativo do termo” (MOSER, 1996, p. 303). Desta maneira, as mediações de Deus se dão por sua Palavra, pelos irmãos na fé, dos que buscam sinceramente a verdade e que podem ajudar a discernir a própria consciência, e através a vontade de Deus.
O pecado não é uma realidade para aqueles que se filiam a alguma religião, é contrariar aos imperativos mais profundos da consciência, não importa se vinculada a uma religião ou não. As religiões medeiam à estruturação da consciência em torno de níveis, oferecendo subsídios precisos para a formação de uma boa consciência.
É no plano social que a consciência vai enfrentar as maiores dificuldades. As microestruturas se encontram envoltas pelas macroestruturas. Por isso, frei Moser trabalha em “A consciência evangélica face às macroestruturas”, a formação da consciência moral-evangélica que se dá dentro do contexto macroestrutural. O ser humano em sua história individual é ligado à grande história dos destinos da humanidade. A consciência moral-evangélica não pode ficar indiferente diante das situações que apontam para a estrutura do pecado e que contrariam os planos do Criador. “A Igreja não pode restringir sua missão a um trabalho efetuado apenas na profundidade dos corações. Sua tarefa é muito mais empenhativa. É lutar em favor do Reino, e, consequentemente, contra o anti-Reino e seus interesses” (MOSER, 1996, p. 305). É necessária uma autêntica conversão evangélica para se perceber o mal incrustado nas relações sociais, e através de uma prática libertadora impor um imperativo categórico à consciência cristã que a situação pode e deve ser diferente.
No terceiro tema “Reconciliação e penitência numa sociedade conflitiva”, frei Moser apresenta a temática do sacramento da reconciliação. Para ele, o ser humano não faz somente a experiência do pecado, o mesmo é impelido a uma profunda conversão que lhe faz sentir reconciliado com Deus, com os outros, com a criação e consigo mesmo. Cristo reconcilia todas as coisas e o ser humano com ele mesmo, Ele promete o perdão e oferece-o de um modo privilegiado através da Igreja. O grande questionamento apresentado por frei Moser é como apresentar este sacramento a uma sociedade conflitiva.
Em “Os conflitos como expressão de estruturas pecaminosas”, o autor afirma que não se vive dentro de um mundo reconciliado, pelo contrário, o ser humano vive em um mundo despedaçado. Vive-se em uma sociedade conflitiva. “Sociologicamente falando, existem conflitos lá onde existem interesses antagônicos, representados por grupos antagônicos, que procuram impor seus interesses e pontos de vista” (MOSER, 1996, p. 308). Isto revela que os conflitos dificilmente deixam de ser ideologizados, ambos os lados procuram apresentar seus interesses como os únicos aceitáveis por todos. Os conflitos mais profundos são aqueles que se encontram por detrás de uma paz aparente. Podem-se elucidar conflitos de ordem econômica, agrário, demográfico e até mesmo religioso, servindo este último de instrumento para a pacificação e alienação das massas.
“A missão reconciliadora da Igreja” auxilia o ser humano a perceber os mecanismos de injustiça que se sobrepõe ao mecanismo que visam à promoção da justiça e da paz. A reconciliação entre os homens requer primeiramente uma reconciliação com a própria criação “em muitos conflitos está um modo dominador de relacionamento com a criação, na superação dos conflitos deverá estar um modo fraterno de relacionamento com a própria criação” (MOSER, 1996, p. 310). Frei Moser destaca aqui os movimentos ecológicos que chegam à raiz econômica dos problemas ecológicos.
Muitos conflitos se apresentam com características religiosas. Por isso, a necessidade de um diálogo ecumênico e inter-religioso. Estes movimentos ecumênicos devem ressaltar que o projeto de Deus é de comunhão e participação. Assim, a verdadeira reconciliação apresentará uma raiz transcendental, ligando o ser humano a si, ao outro, a criação e a Deus. A Igreja tem uma tarefa central nesta reconciliação. Sua missão é de ser ao mesmo tempo sinal e gérmen visível do Reino de Deus, de uma humanidade reconciliada em todas as direções, a começar com Deus e seus projetos. Através do amor efetivo e do perdão, a Igreja vive esta reconciliação interna, exprimindo sua conversão profunda para Deus, para os irmãos e para as criaturas. A Igreja celebra a reconciliação lá aonde ele acontece

O faz de modo especial através do sacramento da penitência, que evidentemente é incompatível com certas situações de injustiça interna, que pode comprometer seriamente a missão reconciliadora face ao mundo (MOSER, 1996, p. 313).

“Quando a confissão se torna mais exigente”. O sacramento da penitência faz parte de um todo maior, que é constituído pelo empenho reconciliador na Igreja e na sociedade. Este sacramento deve remeter ao Deus de misericórdia encarnado em Jesus Cristo. Quando se busca a reconciliação na vida cotidiana e em seus diversos afazeres que levam o ser humano a atos de misericórdia, o sacramento do perdão aparecerá como o coroamento de um processo de conversão e busca de reconciliação mais plena. Será o louvor de uma Igreja que acredita na utopia de um mundo reconciliado. Deus salva o ser humano justamente quando este se considera perdido. O sacramento da reconciliação nesta dinâmica se transformará naquilo que o caracteriza: “presente de Páscoa que revela o Ressuscitado em todo o seu esplendor” (MOSER, 1996, p. 315).
Portanto, após apresentar as principais ideias de frei Moser pode-se afirmar que nenhum ser humano é justificado para se chamar o outro de “pecador”, pois simplesmente não se conhece o estado interior dessa pessoa nem o nível de conhecimento e liberdade concretizado em seu comportamento. Pode-se emitir o julgamento de que determinada ação praticada por outra pessoa é na verdade um erro moral objetivo. Diante da natureza humana, frequentemente inclinada para o mau uso dos bens divinos, faz-se necessário que o ser humano, seja guiado por parâmetros que o ajudem a corresponder da melhor forma possível ao chamado divino de participação na obra da criação, parâmetros que o redirecione constantemente para a graça, canal de encontro do Amado pelo amante, do criado com o Eterno.



[1]MOSER, A. O pecado: Do descrédito ao aprofundamento. Disponível em: . Acessado em 24 mar. 2015.

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