RESENHA: TABORDA, Francisco. Penitencia contidiana: uma verdade a ser recordada.

TABORDA, Francisco. Penitencia contidiana: uma verdade a ser recordada. REB, n. 302, abr/jun, 2016. p. 402-427.

O artigo “Penitência cotidiana – uma verdade a ser recordada” do padre e doutor Francisco Taborda, foi extraído da REB (Revista Eclesiástica Brasileira) do trimestre de abril-junho do ano de 2016. O texto tem como proposta realizar algumas considerações antropológicas acerca da reconciliação e de suas expressões e, apresentar as várias modalidades de penitência cotidiana que a Tradição da Igreja sabia valorizar como fonte fundamental do perdão de Deus para as faltas de cada dia.
Em uma breve introdução, o autor afirma que, na época anterior ao Concílio Vaticano II era comum entrar em uma igreja aos sábados à tarde e encontrar os confessionários ocupados e filas de fiéis que procuravam o perdão de Deus na confissão semanal em vista de comungar no domingo. Na vida religiosa consagrada, a prática semanal do sacramento da penitência era prescrita pelo Código de Direito Canônico de 1917.
Segundo Taborda, as formas de comunicar o perdão de Deus por Cristo no Espírito são variadas. Apenas a teologia e a prática eclesial pós-tridentina, na sua reação contra a Reforma, levou a esquecer essa variedade e, na prática, concentrou o perdão eclesial dos pecados exclusivamente no sacramento da penitência. Apesar de ter suas raízes no Novo Testamento, a instituição penitencial pós-batismal só se encontrará estruturada no fim do século II, decalcada no sacramento primeiro do perdão, o batismo. A vida cristã como exercício cotidiano da existência batismal é, em si, conversão contínua, e como tal, suas expressões exteriores são de graça e reconciliação.
Assim, os Padres da Igreja colocaram o acento em primeiro lugar na penitência cotidiana, pois aquilo que veio a chamar-se de “sacramento da penitência” era exceção destinada a uns poucos cristãos que caíam em faltas graves e em geral públicas – como, apostasia, homicídio e adultério.
No primeiro ponto abordado por Taborda, ele apresenta a partir do ponto de vista antropológico, o processo de reconciliação e suas expressões. Conforme apresenta o autor, utiliza-se muito a expressão “fazer as pazes” para designar a reconciliação na linguagem de cada dia. Lembrando o reatar das relações de amizade rompidas, porque alguma ação de uma parte incomodou a outra, causando uma situação de conflito.
Antes do incidente que ocasionou o problema, a “paz” era um fato espontâneo, agora deixou de existir e deve ser restaurada por um ato explícito e recíproco. A iniciativa pode ser unilateral, mas a efetivação só se dá pela vontade de ambos os implicados. A reaproximação de duas pessoas desafetas não se dá de uma hora para outra. É um processo, como afirma o autor, e isso dependerá de sinais, “gestos de boa vontade”. As formas cotidianas podem ser simples como um cumprimento, estender a mão, prestar-lhe uma ajuda, dar-lhe um presente. Esses gestos podem vir tanto da pessoa que ofendeu a outrem, como da própria pessoa ofendida.
Mas o “pedir perdão” é a expressão da linguagem mais forte para reconciliação. Supõe verdadeira ofensa, requer generosidade do atingido e humildade de quem o ofendeu. Uma forma profundamente humana de restabelecer um rompimento grave entre duas pessoas é o que se poderia chamar de diálogo de reconciliação, e para que isto aconteça, pode-se entrar a intermediação de terceiros e se prevê uma condição, a abertura mútua. Assim, a reparação se dá através de reparações concretas, se for possível, que se desfaça o mal feito. Para este diálogo de paz, pressupõe também que o ofendido reconheça sua parte de culpa, pois quase nunca se rompem as pazes por falta unilateral.
Para Taborda, o que ele esboça antropologicamente, nessa espécie de fenomenologia do perdão e da reconciliação entre os humanos, vale analogamente da relação do homem para com Deus. O sacramento da penitência é, na realidade, uma forma elaborada de reconciliação com Deus.
Afirma que se fala de uma “crise da confissão”, mas segundo o autor, talvez essa “crise” não seja uma perda, mas talvez um ganho, para assim, volver-se à riqueza e à variedade da Tradição.
No segundo ponto abordado pelo autor, ele apresenta os meios cotidianos de perdão – “paenitentia cotidiana”. A Tradição, fiel ao Novo Testamento, sempre valorizou as formas cotidianas de perdão, elas expressam a continuidade da conversão batismal. O autor afirma que Yves Congar compara o exercício ordinário da vida cristã com a cicatrização permanente do mal em nós, e cita-o: “Como o organismo são reage naturalmente e cicatriza sem sentir as feridas superficiais que o atingem”, assim quem se sabe chamado por Deus à conversão reage espontaneamente contra o pecado.
Francisco Taborda assegura que os Padres da Igreja – entre eles, Orígenes, João Crisóstomo, João Cassiano, Cesário de Arles – fizeram longas e diversificadas listas de ações que são fonte ou manifestações do perdão dos pecados: o batismo, a esmola, o perdão dado ao próximo, a caridade, a “penitência canônica”, a humildade, as vigílias e as orações, a leitura da Palavra de Deus, o martírio, a misericórdia, a prática de jejuns, a visita aos enfermos e aos prisioneiros.
Tomás de Aquino, baseado em Agostinho, ainda acrescenta alguns pontos nestas listas, ensinando que os pecados veniais são perdoados de três modos: pela infusão da graça e, consequentemente, por qualquer sacramento. Pela confissão ou batendo no peito ou rezando o Pai Nosso. E, por fim, por alguma expressão de reverência para com Deus que pode ser exercitada por uma bênção episcopal, pela aspersão com água benta, ou ainda, por alguma unção sacramental.
O autor, a partir desta lista acima apresentada, explicita algumas dessas formas de penitência cotidiana para, segundo ele, se ter um maior conhecimento de sua riqueza e para redescobrir as práticas caídas em desuso, que são passíveis de atualização.
Ele destaca a Leitura/escuta da Palavra de Deus: fundamenta-se, sobretudo, no Antigo Testamento, o qual por muitas vezes define o pecado como a não escuta da palavra de Deus (cf. Baruc 1,15-21). Assim sendo, converter-se é deixar de ser surdo e escutar a Palavra de Deus. E afirma, que mais que mero ouvinte, deve-se ser realizador da Palavra – “Não é quem diz ‘Senhor, Senhor’ que entrará no Reino dos céus, mas quem faz a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21). É na vivência da Palavra que o cristão experimenta a reconciliação. A acolhida e a prática da Palavra de Deus são suficientes para que viva a reconciliação e com o próximo. Salienta que a escuta da Palavra pode ser na liturgia - Celebração Eucarística, no próprio Rito da Penitência – na lectio divina e na leitura individual da Escritura, essa que deve ser atenta e meditada.
Taborda destaca o tríptico clássico – a esmola, a oração e o jejum: em relação à esmola, afirma ser uma manifestação concreta do amor fraterno, expressando a vontade de sair de si. Quem se abre à necessidade do outro em busca da justiça e da partilha dos bens encontra a Deus, sua misericórdia e perdão. Agostinho entende a esmola num sentido bem amplo que inclui tanto as diversas “obras de misericórdia corporal” como as “obras de misericórdia espiritual”.
Em relação à oração, o autor nos afirma, que esta abre o homem e mulher a Deus como centro de suas vidas. A oração cristã por excelência para o perdão dos pecados é o Pai Nosso, a ser rezado cada dia para a remissão dos pecados cotidianos. Agostinho relaciona-a com o batismo, dizendo que: “Fomos lavados outrora pelo batismo, somos lavados cada dia pela oração”, ela seria o “batismo de cada dia”, ou ainda, “a limpeza cotidiana”.
O jejum significa a relativização das próprias vantagens e a fuga da idolatria, pela renúncia ao que satisfaz. Não se trata do jejum pelo jejum, como prática ascética, mas seu valor provém da caridade. O autor apresenta Leão Magno, que afirma que não se trata de qualquer jejum, mas daquele em que se renuncia ao alimento, para com o dinheiro poupado na comida, socorrer às necessidades dos pobres: “Torne-se refeição dos pobres a abstinência de quem jejua”.
Com todas as suas variantes, dependentes do gosto dos autores, do ambiente histórico e do contexto das obras – esmola, oração e jejum, continuarão a ser pregados pela Igreja como formas de penitência. Entretanto, a facilidade de um gesto sacramental de reconciliação, graças à inovação dos monges irlandeses e escoceses, inovação que está nas origens da confissão auricular, fez com que o valor penitencial da esmola, oração e jejum, enquanto fontes do perdão dos pecados, desaparecesse sempre mais.
Das listas, ainda destaca a confissão a leigos: como sendo a outra forma cotidiana de perdão que depois ficou intimamente associada ao que hoje se chama de sacramento da penitência. Essa prática é a confissão dos pecados a uma pessoa em que se confia ou de quem se pode esperar ajuda para corrigir a própria vida e a intercessão diante de Deus pelo pecador que lhe confessou seus pecados, tendo como fundamentação bíblica – Tg 5,16 e Gl 6, 1-2. Essa prática teve uma vitalidade extraordinária na vida monástica, com a finalidade de aconselhamento espiritual exercido por monges, quer fossem presbíteros ou não. Mas ela extravasa os mosteiros, e, na alta Idade Média, passou a ser considerada um substitutivo da confissão sacramental.
Tomás de Aquino considera a confissão a um leigo como “de certo modo sacramental”, mas lhe falta a dimensão eclesial da reconciliação com a Igreja. Por isso, quem obteve o perdão de Deus, confessando seus pecados graves a um leigo, deve repetir a confissão diante do ministro adequado. Assim se consumará o sacramento, pois, enquanto não há absolvição, que constitui a forma do sacramento, a confissão não é plenamente sacramento. Já em caso de pecados veniais, a confissão a leigos é suficiente, perdoa os pecados, pois é um sacramental como bater no peito ou usar água benta.
Essa prática era muito corrente até o século XIV, especialmente em caso de ferimentos graves em guerra – segundo relatos de Inácio de Loyola, o ferido confessava seus pecados a outro soldado e mesmo ao cavalo ou à espada. O declínio da confissão a leigos pode ser observado a partir do século XIV, certamente por influência da doutrina escotista sobre a penitência, segundo a qual a absolvição era o essencial do sacramento. A contra Reforma acentuou ainda mais a confissão individual ao presbítero ou bispo como único meio de perdão dos pecados. A prática da confissão a leigos, afirma o autor, que hoje parece estranha, tem seu sentido como expressão da intercessão eclesial pelo pecador.
O último destaque dado por Francisco Taborda é a eucaristia como sacramento do perdão: a mentalidade pós-tridentina, exacerbada pela posterior influência jansenista na piedade eucarística, acostumou a Igreja Latina a considerar o sacramento da penitência como condição prévia a uma digna recepção da eucaristia. Assim, caía no esquecimento a verdade tão bem fundada na Tradição de que a eucaristia é também sacramento do perdão de Deus, uma verdade sempre presente na consciência da Igreja.
Segundo o autor, o Concílio de Trento não tratou explicitamente a questão da eucaristia como sacramento do perdão, mas reconheceu que a participação no memorial do sacrifício de Cristo perdoa os pecados. Pois, não se trata de perguntar que pecado e quantos pecados a eucaristia perdoa, mas de vivenciar a eucaristia não como mero prêmio para os bons, senão também como “remédio” destinado a curar as “feridas” cotidianas do pecado.
Taborda assegura ainda que entendia-se, segundo a Tradição, que nem todos os pecados (mesmo graves) requeressem a penitência canônica, mas só os que rompiam o corpo eclesial (apostasia) ou solapavam seriamente as relações humanas (adultério) ou sociais (homicídio).


Por fim, diz que muitas outras formas cotidianas de reconciliação poderiam ser listadas, além das acima especificadas. E garante que essas formas não visam a “relativizar” o sacramento da penitência, mas antes a coloca-lo em seu texto vital: o caminho incessante de conversão a Deus. Por isso, a penitência cotidiana é uma verdade a ser recordada. As formas clássicas de penitência cotidiana não perderam nada de sua atualidade, precisam, no entanto, ser contextualizadas no mundo atual. Essas práticas de penitência cotidiana poderiam também levar a perceber que o sacramento da reconciliação não consiste numa ação mágica operada pela absolvição, mas exige um processo de contínua conversão.

Entregue academicamente: 18/out/2017

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